Eu
sabia que terminaríamos, eu sabia que era uma viagem sem destino, sabia
desde o início e não sabia, não sabia que doeria tanto, que era tanto,
que era muito mais do que se pode saber, ninguém pode saber um amor,
entender um amor, tanto que terminou sem muito discurso, foi uma noite
em que você quase pediu, me deixe. Ora, pra que me enganar: Você
realmente pediu, sem pronunciar a palavra, você vinha pedindo, me deixe,
olhe o jeito que te trato, repare em como não te quero mais, me deixe, e
eu, de repente, naquela noite que poderia ter sido amena, me vi
desistindo de uma viagem e de nós dois em menos de dez minutos, a decisão
mais rápida da minha vida, e a mais longa, começou a ser amadurecida
desde o dia em que você me mandou embora pela milésima primeira vez, desde uma tarde em
que ainda nem tínhamos iniciado nada eu já amadurecia o fim, e assim
foi durante os quatro anos em que estivemos tão juntos e tão separados, eu
em constante estado de paixão e luto, me preparando para o amor e a dor
ao mesmo tempo, achando que isso era maturidade. Que idiota eu sou, o
que é que amadureci?
Nada,
nem a mim mesma, jamais deixei de ter 10 anos, nem quando tive 20, nem
quando fiz 23. Nunca tive idade, ela de nada me serviu, ser lúcida
sempre foi apenas uma maneira de parecer elegante, uma estratégia para a
convivência. Você lembra como eu chorei aquela noite, lembra do fim,
você não pode ter esquecido aquela cena, cheguei na sua casa sem acender as
luzes e toquei a campainha, você olhando para fora da porta enquanto eu derramava toda a
minha frustração e meu desespero, como se a culpa fosse minha e não sua,
ou fosse sua e não minha, como se existisse culpa para o término de um
relacionamento que simplesmente não tinha mais combustível, nem mais
estrada. Faz quanto tempo desde aquela cena? Eu consigo enxergá-la por
vários ângulos, vejo você de frente pra mim, parecia um soldado, tão
ereto, em vigília de si mesmo, me abraçando meio sem jeito, querendo saltar do terceiro andar, sair
sem precisar passar pela porta, sem passar pelo adeus, e eu, curvada,
amparada naquela janela, demolida, e então, na cena seguinte, nós de
frente um para o outro, mas com as cabeças abaixadas, você queria
ver meu rosto, e eu estava espantada com o seu, tão sereno, aliviado,
quanto tempo faz, 7 dias? 15 dias? Um mes desde que eu sai da sua
casa? Eu ainda estava quieta, eu ainda estava sem pensar e
sem sentir, de repente me deu uma calma, nenhuma desgraça aconteceu, eu desci pelas escadas, eu fechei a porta do apartamento e não chorei
mais, eu vi pela janela a luz do seu quarto, o meu carro saindo da garagem e não chorei, cheguei em casa e fui para o banheiro escovar os dentes, acho que escovei os dentes, não
lembro, e botei uma camisola e fui pra cama e não chorei, não pensei,
não senti, não chorei, entendi, não entendi, não pensei, não sei, acho
que dormi.
Você
não ligaria no dia seguinte, era domingo, voce nao veio, e nao viria. O combinado era jantarmos fora na
noite anterior, não jantamos, ninguém se alimentou, quanto tempo faz
desde aquela noite, parece um século, foi ontem. Decidi seguir a rotina: O que eu fazia aos domingos de manhã?
Eu dormia, mas faltava você, coloquei o
tênis, saí a pé de casa, falta você e não falta, o estrondo está
diminuindo, o barulho cessou, será que eu já percebo o acidente? Dou uma
volta na rua, duas voltas, três voltas, você não virá aqui me ver?
Volto. Telefono pra minha Tia, não telefono pra você, conto pra ela que
acabamos, meu relato é muito coerente, ela lamenta mais ou menos, já
ouviu eu contar essa história antes, somos reincidentes em finais, mas
agora é pra valer, quem me acredita? Eu não me acredito, mas agora não
te quero mesmo, e eu já ouvi isso antes, de você, de mim, agora não tem
mais volta – Dei tantas voltas na cidade, é tão ridículo caminhar pra
lugar nenhum, para quem vou ficar magra e saudável? E voltei a dizer: Não, Tia, acabou de verdade, e pela primeira vez reparei em minha voz
tremida, pela primeira vez naquele domingo eu fraquejei, as palavras
saíram entrecortadas, eu catava as sílabas que me fugiam, e ela do outro
lado da linha fingia que não doía nela também.
Liguei
o computador, escrevi, que é como organizo meu pensamento, escrevi e
parecia que eu estava ditando a mim mesma um texto requentado, agora
acabou, agora é comigo, sei que vou conseguir, tenho meus motivos, e me
dei várias explicações, tentei me convencer, eu estava tão racional, tão
genial, eu quase consegui, e não almocei, zanzei pela casa, tomei um
banho, troquei de roupa, tirei suas fotos dos porta-retratos e desabei
pela segunda vez, a primeira sem que você testemunhasse.
Guardei
na gaveta aquela fotografia em que você estava de moletom marrom, parecia um
garoto, me agarrando pela cintura. Guardei todas. Aquela outra, nós
dois, eu de novo enlaçada por você. E uma de você sozinho, um flagrante,
você não percebeu, bati a foto enquanto você fumava narguile, tão lindo,
você era tão lindo, você ainda é o mesmo homem depois de ontem, o mesmo
homem sem mim? Eu me olho no espelho e não me enxergo, não sou mais a
mesma, perdi a identidade. Tirar suas fotos de vista me pareceu uma
providência curativa, agora você não o verá mais, querida, vai
esquecê-lo mais rápido, como somos inocentes. E eu lá quero esquecê-lo?
Sua presença ainda está tão quente dentro desse apartamento, o colchão
ainda está meio afundado do lado em que você dormia.
Não
sei se as pessoas choram de forma diferente umas das outras, eu choro
contraída, como se alguém estivesse perfurando minha alma com uma lâmina
enferrujada, choro como quem implora, pare, não posso mais suportar,
mas o insuportável é uma medida que nunca tem limite, eu chorei no
domingo, na segunda, na terça, em várias partes do dia e da noite, um
choro de quem pede clemência, de quem está sendo confrontado com a
morte, eu estava abandonando uma vida que não teria mais, eu sofria
minha própria despedida, morte e parto, eu tinha que renascer e não
queria, não quero, sinto que caí num vácuo, perdi a parte boa da minha
história, e não quero outra, enquanto choro penso que se alguém me visse
chorar dessa maneira me salvaria, prestaria socorro, chamaria uma
ambulância, eu nunca vi você chorar, você alguma vez chorou por mim,
você sofre a minha ausência, sente minha falta? Estar sozinha nessa
aflição me condói de mim mesma, é o labirinto do inferno, não há saída,
não há saída, você não está me esperando lá fora, nem hoje, nem amanhã,
você não vai fazer nenhum gesto para me resgatar, e se fizesse, eu não
estenderia minha mão, e é isso que me faz descrer de tudo, eu sei que
acabou, eu estava infeliz ao seu lado, eu estou infeliz sem você,
mentira, eu era feliz ao seu lado, e nem sei se a palavra é essa, feliz.
Felicidade é um resumo fácil, uma preguiça de investigar o muito mais
que nos ergue diariamente, na época era o que me bastava, eu sabia onde
estava e com quem, eu não estou infeliz, eu só estou perdida e não
consigo mandar nenhum S.O.S., ninguém sabe onde estou, largaram meu
corpo em cima dessa cama e ninguém me procura.
Choro,
choro muito, choro agora feito uma guitarra dedilhada por um bêbado,
sinto uma piedade inconsolável de mim, de tanto que recordo o quanto te
quis e o quanto te admirei por amares a mim, era paixão inveterada,
paixão de doer, paixão de não dar certo mesmo, paixão de perder o tino, e
perdi por completo, hoje tento compreender duas ou três frases e nem
isso me cabe, ficou tudo sem lógica, eu que prezo tanto a lógica, não
entendo mais nada, mergulhei no escuro da minha perplexidade, você era
meu até bem pouco tempo, mas vou sair dessa, veja, já estou enxugando as
lágrimas, procurando meu celular para fazer uma ligação qualquer, esses
compromissos que a gente inventa para fingir que a vida continua.
Marquei hora no cabeleireiro sem ter motivo algum pra ficar bonita.
Não
consigo mais ser uma pessoa comum, dessas que conseguem ver uma novela
sem se afligir e que dirigem prestando atenção apenas nos sinais de
trânsito, agora eu só assisto à tevê com o controle remoto na mão para
que eu possa trocar de canal a qualquer indício de que virá cena de
beijo, não consigo ver um homem e uma mulher se amando, é como se fosse
uma agressão pessoal, vamos massacrar essa coitada, vamos fazê-la
lembrar, mas não, eu não fico lembrando de nós dois, é muito mais
torturante que isso, eu fico imaginando você com outra mulher, você
beijando outra mulher, e isso me dá uma náusea que quase me faz
desmaiar, fico em posição fetal, eu penso que vou ficar louca, como se
já não estivesse, eu não posso ver uma foto de mulher bonita que já
imagino o quanto você vai se interessar por ela, e vai desejá-la, eu
passei a ter ódio de todas as mulheres que cruzam seu caminho, meu
caminho. E no trânsito, eu só tenho olhos para as placas dos carros que
são da mesma cor e marca que o seu, e quando um se aproxima eu rogo a
Deus para que não seja você, e ao mesmo tempo quero que seja, e às vezes
consigo não olhar, me sinto tão valente, consigo por minutos olhar só
em frente, não reparo em nenhum veículo a minha volta, é como se
estivesse sozinha na avenida, e é nessas horas que corro o risco de
bater, eu acelero sem perceber e depois freio muito em cima dos outros
carros, eu saio da minha pista sem sinalizar, eu esqueço pra onde estou
indo, eu vejo você caminhando pelas
calçadas e não é você, de repente todos os homens do mundo ficaram
idênticos a você, e eu ainda não me envolvi num acidente por um triz, ou
talvez já esteja mais do que acidentada para ainda ter que enfrentar
essa dor na carne, de verdade, sem ser apenas uma metáfora. Evito olhar
os casais de namorados nas paradas de ônibus, e tem um painel
publicitário em que um homem olha para uma loira com um desejo tão
escancarado que me retorço e choro só de imaginar você olhando assim
para outra mulher, e eu sei que você está, ninguém precisa me contar, eu
sei como é que você se cura, se trata, você não chora nem lamenta, você
volta pra rua, você vai atrás de todas as mulheres nuas feito um
vira-lata, você está olhando nesse instante para outra mulher, está
entrando nela, dizendo a ela como ela é gostosa, você está me matando
dentro de você, e eu morro a quilômetros de distância, a sós comigo
mesma, você transa com outra e me mata, você goza e me mata mais um
pouco, você dorme com ela na cama que costumava ser nossa e me deixa insone pra sempre, eu sei que não vai ser
pra sempre, mas eu não enxergo o dia de amanhã, hoje eu só estou
acordada pro eterno desse pesadelo, você era meu, droga, exclusivamente
meu até dias atrás, meu como esse sofrimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário